Os maiores sonnettistas occidentaes (portanto mundiaes, ja que o
sonnetto, ao contrario do macarrão ou do futebol, é uma typica invenção
occidental) não são maiores pelo volume da obra, certamente, pois que a
contam pelas centenas, não pelos milhares de sonnettos, a começar dos
paes da creança: Petrarcha com trez centenas, Camões com duas. No
Brazil, mesmo durante o apogeu parnasiano, a conta não inflaciona alem
do excedido milhar que se attribue a Luiz Delphino, a julgar pelo
balanço do tambem parnasiano Cruz Filho, cuja HISTORIA E THEORIA DO
SONNETTO (que assim rebaptizei apoz annotar criticamente) credita mais
de oito centenas ao arcadico José Maria do Amaral e evita maiores
comparações numericas.
Como ninguem aqui está fallando dos gols de Pelé nem de Friedenreich, a
preoccupação quantitativa só faria sentido si o sonnettista fosse
candidato a uma vaga, não na Academia Brazileira de Lettras, mas no
Guinness Book. Pessoalmente, pilheriei bastante sobre um hypothetico
recorde do genero emquanto, entre 1999 e 2012, compuz alem do quincto
milhar e, mais acintosamente, quando superei os 2.279 sonnettos
compostos pelo italiano Giuseppe Belli no seculo XIX, embora sciente de
que, dentro ou fora do meu proprio paiz, haveria algum maluco que,
anonymo ou não, se fixasse nesse molde ainda mais obsessivamente do que
me fixei.
Ja na epocha (2008) em que eu andava pelos dois milhares, alguem me
fofocou que um certo Jorge Tannuri passava dos quattro. Quando,
finalmente, me "limpei" do vicio, em 2012, elle teria chegado aos seis
milhares e, a menos que battesse as botas, estaria hoje pelos dez. O
mais inaccreditavel nessa historia é que alguem com tamanha bagagem, si
não entrasse para a ABL, teria de ser ao menos commentadissimo na rede
virtual, como eu mesmo fui, ainda que pouquissimo lido... mas Tannuri
não era encontradiço no cyberespaço. Seria um personagem da ficção
internerdica? Só recentemente as buscas deram algum resultado, para meu
allivio, pois eu temia que os boatos fossem alimentados apenas pela
lenda dum auctor quantitativamente productivo mas qualitativamente
inconsistente. Ainda bem que sua versificação se me revelou inteiriça e,
o mais importante de tudo, não era assim tão oca. Não sei por que a
midia especializada, os organizadores de anthologias ou os zineiros e
blogueiros não ventilavam o nome de Tannuri. Publicar, elle publicava,
fosse no formato livro ou folheto. Participar de encontros e debattes
poeticos, que eu saiba, elle participava. Paresce que até fundou uma
Sociedade Litteraria do Sonnetto, que seria a SOLIS, mas a sigla suggere
um isolamento que não sei si chega às proporções do Gremio Recreativo e
Eschola de Samba Eu Sou Mais Eu. Espero que não, mesmo sem ter sido
convidado a me associar, pois sempre achei que o sonnetto precisava de
mais defensores, ja que detractores não lhe faltam.
Agora que me livrei do TOS (transtorno obsessivo sonnettomaniaco), posso
allegar, entre amigos, que isso de recorde é bobagem, ainda que o
proprio Tannuri, ao que me relatam, fizesse questão de superar metas.
Minhas allusões ao assumpto, alem de ironicas, serviam mais para
emphatizar a compulsão sonnettistica como alternativa (no caso do cego
emputescido e puteador) ao suicidio, ao alcoholismo, às drogas, ao jogo
ou, simplesmente, à insomnia e à masturbação. Si eu realmente estivesse
obcecado pelo recorde e dependente dessa insomne addicção, não teria
parado de sonnettar em 2012 nem teria interrompido a producção tantas
vezes para escrever romance, conto, chronica, motte glosado, pelleja ou
tractados estichologicos e orthographicos. Peor, si eu de facto
ambicionasse um logar no pantheão dos campeões de productividade
sonnetifera, minha insomnia não seria causada pela cegueira, mas pela
paranoia de que, em qualquer poncto do paiz, uma Emily Dickinson da
vida, quem sabe la em Florianopolis, em Paraisopolis ou em Petropolis,
tivesse deixado, manuscriptos em calhamaços, mais de dez ou vinte mil
sonnettinhos psychographados, fossem assucarados ou amargurados, para
desbancar Amaral, Delphino, Mattoso ou Tannuri sommados... Credo em
Cruz, Filho!
Voltando ao Jorge, que felizmente não é tão aguado nem mellado quanto o
J. G. de Araujo Jorge, achei delle, si não seus livretos, alguns
exemplos que em nada desmerescem a reputação desse paulistano de 1939
que, radicado no Rio, formou-se pela Eschola Nacional de Engenharia da
Universidade do Brazil (hoje UFRJ) em 1961, especializou-se na França em
1964 e, desde 1976, habituou-se a compor sonnettos, timidamente a
principio e, depois de apposentar-se em 1997, capitulou à mania. Sei bem
como é isso. Mas não é intrigante? Mesmo registrando seus livros na
Bibliotheca Nacional e, ja em 2008, chegando aos cinco mil (emquanto eu
ainda estava nos trez), seus sonnettos não eram divulgados siquer a
poncto de chegarem-me às mãos... O caso de Tannuri me lembra o de outro
profissional da area, Eno Theodoro Wanke, incansavel pesquisador da
trova e tambem sonnettista, que só era bem conhescido em circulos
alternativos, embora tivesse até suas connexões internacionaes.
A que se deve (perguntariam os adeptos da theoria da conspiração) tal
ommissão, ou tal indifferença, ao caso de Tannuri? Seria por causa da
thematica? Mas si até a minha, pornographica em grande parte, não
permanesceu silenciada pelos puristas e puritanos! Ou seria por algum
viez politico, ideologico ou sectario, vale dizer, as inexoraveis
panellinhas e egrejinhas, que vivem a nos patrulhar? Quanto às
egrejinhas, talvez uma pista para o hypothetico boycotte ao Tannuri
fosse sua solidariedade ethnica e ethica ao povo palestino, ao qual
tambem me solidarizei, como no caso do sonnetto "Damnações Unidas" que
offeresci à anthologia POEMAS PARA A PALESTINA, organizada por Claudio
Daniel e Khaled Mahassen. Não sei. Só sei que Tannuri maneja sem pejo a
grammatica, a metrica, a rhyma e, principalmente, a thematica. Si não é
desbragadamente debochado nem despudoradamente fetichista, isso até
deveria ser tido na conta de virtude, por opposição ao vicio que me
estigmatizou como pornographo. Algum mestrando ou doutorando
provavelmente theorizará a respeito, ainda que tarde.
Examinemos, entretanto, o que temos à mão, attendo-nos aos contextos
palestino e brazileiro. Intercalo sonnettos meus aos de Tannuri a fim de
propiciar ao leitor uma base de parallelismo. Depois commentamos.
A HEROICA SAPATADA [Sonnetto 4630 de Jorge Tannuri, em 19/12/2008]
Ao fim dos seus ruinosos dois mandatos,
Resolve o abutre-mor inconsequente,
Chegar até Baghdad, onde seus actos
Deixaram morticinio deprimente...
Um jornalista adverso dos maus tractos
Impostos pelo biltre prepotente
No Irak, direcciona dois sapatos
E o chama de cachorro delinquente...
Na offensa contra o norte-americano,
Mostrou-se bem heroico o mussulmano,
Embora fosse amarga a recompensa
Da sapatada, com prisão, tortura,
Espancamento, abuso de censura
E desrespeito à livre acção da Imprensa.
LANÇAMENTO DE LIVRO [Sonnetto 3886 de Glauco Mattoso, em 17/10/2010]
Sapatos attirar no presidente,
si for americano, é o melhor gesto
de alguem que, revoltado, faz protesto
e, ao vivo, está das cameras na frente.
Mas gesto ainda mais intelligente
é aquelle do escriptor, tão immodesto
a poncto de esperar que o manifesto
lhe renda fama e gloria, de repente:
Seu proprio livro attira (e rente passa
ao rosto do estadista), emquanto a photo
lhe flagra a cappa e a imagem nem embaça.
Em todos os jornaes, depois, eu noto
que ommittem livro e auctor, ja que, de graça,
ninguem faz propaganda nem dá voto.
GAZA [Sonnetto 4635 de Jorge Tannuri, em 31/12/2008].
Que importa democratica victoria
Obtida num pragmatico escrutinio,
Si um povo é dizimado em morticinio
Por manu-militari peremptoria?
Que importa Mahomé, no vaticinio
Da crença mussulmana alcançar gloria,
Si a vida do Hamaz é merencoria
Com Gaza no calvario do exterminio?
Que importa existir ONU quando as guerras
Decretam-se, por ambições de terras
Tramadas pelos credos assassinos?
Que importa haver a Paz, si a humanidade
Condemna à morte e priva a liberdade,
Na patria dos heroicos palestinos?
SEMITA [Sonnetto 854 de Glauco Mattoso, em 28/8/2003]
"Shalom!" traduz "Salam!": todo opprimido
é primo do oppressor, com quem apprende
a lingua de quem compra e de quem vende
petroleo ou arma, a seita ou o partido.
Mais tempo a guerra aos bancos tem servido,
mais rende, emquanto a morte não se rende
à vida. Quando, emfim, alguem desvende
o enigma, já estará tudo perdido.
Salim e Salomão, Thorah e Corão.
Caim cahiu, e Abel é bellicista.
Javeh propoz, shiitas disporão.
Na areia, cada gotta é uma conquista.
Diluvios racionaram cada grão.
Divisa é linha. A paz, poncto de vista.
O VERO EIXO DO MAL [Sonnetto 4638 de Jorge Tannuri, em 2/1/2009]
Um eixo, para o mal, antes citado
Por Bush, o criminoso costumeiro,
No seu papel de estupido guerreiro,
Não teve seu perjurio comprovado...
Um vinculo deveras destinado
À morte, se appresenta sorrateiro,
Com Tel-aviv e Washington, certeiro
Em dizimar quem seja de outro lado...
Na ONU com o seu poder de veto,
Os norte-americanos dão concreto
Appoio contra a causa palestina
E as armas de Israel vão destroçando
Escholas, hospitaes, gente... em nefando
Terror que desaccapta a lei divina.
DAMNAÇÕES UNIDAS [Sonnetto 4713 de Glauco Mattoso, em 25/9/2011]
Questão controvertida! A Palestina
estado quer tornar-se. Tem direito,
é claro. Um bom accordo estava acceito
entre arabe e judeu, não fosse a mina.
A mina, subterranea, sibyllina,
symbolica, que impede esse perfeito
accordo, é o interesse do subjeito
que está, não la, nem perto, nem na China.
Quem mella qualquer chance de fronteira
commum haver alli, tem seu quartel
num banco americano, é o que me cheira.
Não só: tambem está botando fel
nas aguas, no petroleo, e vae à feira
vender metralhadora ao coronel.
HA... [Sonnetto 3850 de Jorge Tannuri, em 24/5/2006]
Ha récordes de imposto arrecadado
E o povo sobrevive na inquietude...
Ha nullo attendimento na Saude
E o pão de cada dia está minguado...
Ha tempos, o governo nos illude,
Mentindo ser precioso o resultado,
Mas só num raciocinio retardado
Cae bem esta banal similitude...
Ha pantanos nos leitos das estradas,
Ha escholas que estão sendo abandonadas
E o ensigno se degrada por inteiro...
Ha crime organizado e insegurança...
E deante desta homerica lambança,
Pergunta-se onde vae tanto dinheiro.
REDUNDANTE [Sonnetto 190 de Glauco Mattoso, em 1999]
Pediram-me um escandalo, e é p'ra ja.
Malversação de fundos? Nada disso.
O seio da modello, que é postiço,
tambem ja não excita a lingua má.
A droga nas escholas? Ninguem dá
a minima importancia ao desserviço.
Sequestro de empresario? Algum sumiço?
Remedio adulterado? Qua! Qua! Qua!
A fraude eleitoral virou roptina.
As contas no exterior não causam pasmo.
Ninguem extranha o cheiro da latrina.
Até Mathusalem ja tem orgasmo!
Só resta a commentar, em cada esquina,
que o cego é chupa-rola... Um pleonasmo!
Dirão os adeptos do rigor estichologico que, à primeira e superficial
leitura, tudo paresce fluir bem nos versos tannurianos. Os decasyllabos,
quasi todos heroicos, estão regularmente metrificados, rhymados e
rhythmados. Mais attentamente observando, comtudo, verificarão que as
rhymas são, por vezes, pauperrimas: no sonnetto 4630 de Tannuri, quattro
substantivos dão versos graves em "atos", quattro adjectivos em "ente",
mais dois adjectivos em "ano", dois substantivos em "ura" e dois em
"ensa". A syntaxe delle, telegraphica, caresceria de artigos e
conjuncções que alliviassem a juxtaposição de tantos substantivos e
adjectivos. Emfim, o effeito essencialmente poetico, que deveria ser
obtido por meio das figurações metaphoricas ou anastrophicas mais
typicas do discurso sonnettistico, deixa, diriam, a desejar, ficando
apenas a impressão de obviedade simploria, aggravada pela ordem directa,
fria e secca. Isso para não fallarem na sisudez casmurra, na ausencia
total de ironia, sarcasmo, emfim, senso de humor. Quanto a mim, que
nunca estou livre de criticas, dirão que tambem no sonnetto 190 as
rhymas dos tercettos são pobres, que tambem commetto ellipses
asyndeticas, e tal. Mas são os leitores que vão dizer si meus versos
teem a cara do Mattoso e si os de Tannuri teem cara só delle.
Technicamente considerando, segundo os mais zelosos, os sonnettos de
Tannuri seriam correctos. Poeticamente, porem, nem tanto. Ahi alguem
poderá dizer que quaesquer sonnettos, de todos os auctores (inclusive os
meus) incorreriam nos mesmos lapsos, uns mais, outros menos relapsos. De
certo modo, sim. Em milhares de versos, por exemplo, fatalmente algumas
rhymas mais recorrentes accabam por banalizar-se. Uns tantos logares
communs, à força de reiteradamente empregados, desgastam o estylo e
causam aquella monotona e tediosa impressão de autoplagio ao fim da
leitura de poucas centenas de estrophes. Até Camões padesce de taes
vicios durante a extensa jornada dos LUSIADAS. Mas cada poeta acha seu
trunfo num estylema especial, numa "assignatura" discursiva pessoal,
numa "tara" verbal particular, propria ou figuradamente fallando, que
lhe "salva" a originalidade da composição, e Tannuri paresce resentir-se
da falta dessa marca registrada. Um sonnetto seu poderia ser
impessoalmente attribuido a qualquer outro auctor do genero, desses que
pullulam obscuramente pelas anthologias, sem que ninguem desse pela
coisa. Por essas e outras é que, alem do meu linguajar promiscuamente
chulo e prophanamente castiço, faço questão de orthographar meus versos,
tal como reorthographei os de Tannuri aqui exemplificados. E você,
leitor, seria capaz de confundir um deca delle com um meu? Peor que sim,
alguem dirá que confundiu. E agora, Pedro José?
Si serve de consolo, não morri da sonnettomania que accompanharia ao
sepulchro a mediunica senhorinha de Petropolis ou o hyperactivo
engenheiro apposentado, pois o cego puto, debattendo-se entre a
insomnia, o pesadelo e a phantasia masturbatoria, appegar-se-a
desesperadamente ao motte glosado, ao madrigal, ao conto, ao romance ou
ao ensaio, quando não ao buddhismo, ao fakirismo ou à automassagem
linguopedal contorcionistica, a fim de preencher seus ultimos estertores
antes do derradeiro suspiro... Ufa!
///
Nenhum comentário:
Postar um comentário