sábado, 30 de abril de 2016

7 DE MAIO/2016: DIA DO SILENCIO


Muito ja me queixei da falta de silencio, principalmente durante as
madrugadas, quando balladeiros e caçambeiros, lixeiros e baderneiros
perturbam minhas infructiferas tentativas de debellar a insomnia, para a
qual certamente contribuem outros factores (inclusive a propria
cegueira), mas que podia ser combattida com alguma efficacia si as
noites paulistanas não fossem tão barulhentas. Ja tive opportunidade de
enaltescer o silencio em prosa e verso, mas agora quero fallar dos
momentos em que não sinto falta do silencio ou, pelo contrario, é o
silencio que me faz sentir falta de algo. Melhor dizendo, de alguem, ja
que a presença do meu cachorro se traduz em ruidosa sonoplastia:
lattidos, correria, vozes (minha e de Akira) chamando, ralhando ou
rindo... tudo por compta do nosso bassetudo mascotte que, como todos
sabem, se chama Chicho.


Meus pingados leitores tambem ja foram appresentados a Jorge e Salomão,
respectivamente o dono e seu basset, mais conhescido como Salô. Nossa
amizade com aquelle vizinho sessentão vem se estreitando à medida que
virou habito domingueiro levar Salô e Chicho ao "cachorrodromo" do
Ibirapuera. Mas Jorge, que fica todo embevescido com a chance de tutelar
dois salsichudos e vel-os brincar como dois colleguinhas de eschola na
hora do recreio, não se contenta com leval-os e trazel-os de carro: na
volta do parque, deixa-os à vontade dentro de casa (um sobradão com
quintal arborizado, desses typicos aqui da Villa Mariana) e, alem de
lhes offerescer petiscos de todo typo e a toda hora, lhes estimula a
vocação vocal, abrindo-lhes o piano da sala e convidando-os a cantar e
tocar até o fim da tarde. Alguem extranhou? Calma, que tudo tem
explicação.


Sabe-se que, com um pouquinho de encorajamento, a bassezada se desinhibe
e accaba dando show de interpretação, caso da famosa Lucy, estrella do
cyberespaço, cujo solo agguarda apenas um apito para brilhar mundo
affora. Aqui vae a scena immortal:





Claro que, tal como a creançada, os hounds se soltam mais quando teem
companhia, caso do trio vocal que, incentivado pelo uivo humano do
"maestro" que dirige a scena, performa um khoro de causar inveja aos
trez tenores mais populares da historia. Segue a sessão anthologica:





Talento mais raro é o dos orelhudos que se accompanham ao piano, pois
sua carreira artistica exige mais ensaio e affinação. No primeiro caso,
o pianista demonstra sua capacidade de improvisar, mas é Tommy, o grande
idolo do publico audiovisual, quem arrasa com seu perfeito senso de
rhythmo e de melodia. Eis seu maior successo nas paradas do
"canicioneiro" internacional, logo em seguida à appresentação do
improvisador:







Pois não é que Jorjão, encerrando o lanche e accenando com mais
biscoitos depois do sarau, convida Salô e Chicho a uma audição
pianistica, seguida de exercicios individuaes ou em duetto? Primeiro,
elle se senta e toca uma sonata de Scarlatti, ou algo que lembre aquella
sonoridade barroca. Descomptado o amadorismo, até que elle obtem
approvação da dupla que, obviamente, não applaude apenas para aggradar
ao amphitryão que os banqueteia. Encerrado o primeiro numero, chega a
vez de Salô, mais accostumado ao teclado. Por ultimo, Chicho tem seu
momento de gloria, exhibindo ao amigo e ao dono da casa os mais bellos
accordes que uma torta pattola e um tymbre lyricamente grave são capazes
de harmonizar ao ouvido humano.


Emquanto Jorge se emociona quasi até às lagrymas com o khoro
"cãomeristico" (como elle trocadilha), eu quasi não contenho meu choro
de saudade, impaciente com a demora do interphone em annunciar o retorno
do meu fofo campeão, todinho marron e marrento. Affinal Chicho é
devolvido ao nosso convivio e, ainda excitado pelo dia de folia,
percorre todo o appartamento, correndo e lattindo para affugentar
qualquer mariposa intrusa que, como os passarinhos diurnos, possa
invadir seu territorio.


Emfim a casa echoa sons de animação e vida, pondo fim à tarde dominical
que, a despeito dos torcedores que gritam, xingam ou cantarolam la fora,
me paresce tão quieta a poncto de calar no espirito a impressão de
silencio absoluto...


Akira tambem retornou de seu passeio costumeiro e, agora, nós trez
fazemos da cozinha o poncto de encontro da familia. Chicho nos observa
emquanto jantamos, comportadamente sentado nas pattas de traz, farejando
o ar à espera duma lasquinha de presuncto ou duma bituquinha de
linguiça. Em casa de Jorge, elle se sente à vontade para seguir o mau
exemplo do Salô, que tem liberdade até para appoiar as pattas deanteiras
na coxa de quem se senta à mesa, a fim de ganhar pedaços dados na bocca,
mas aqui em casa Chicho sabe que tem regras e permanesce sentadinho e
affastado da minha cadeira emquanto eu e Akira nos servimos. Ja fui
franco e fallei que Salô está muito mal accostumado, precisando de
disciplina mais rigida, mas a resposta do Jorjão é sempre a mesma: "Ah,
coitado!..." Só uma vez, em logar de entregar Chicho aos cuidados do
Jorge, acceitei ficar com os dois bassets no apê, mas foi o que bastou
para entender quanta bagunça ambos appromptam junctos e quão
malcomportado é o mais joven amigo pretão do meu moleque marronzão.
Quando Salô quiz fazer minha coxa de degrau na hora da janta,
segurei-lhe a pattola e disse: "Salôôô! Vocêêê, querendo subir em mim
com ESTA pattola?" Elle reagiu como todo basset quando lhe pegam na
patta: puxou-a e desceu. Tentou de novo e repeti o gesto, até que
percebesse a differença de permissividade e se collocasse ao lado do
Chicho, agguardando sentado que eu jogasse algo no chão. Outra hora
contarei mais mammatas que Chicho não tem e Salô desfructa da mão do
dono.


Quem não tem cachorro e leu até aqui deve estar pensando: "Mas a troco
de que toda essa papparicação dum bicho de estimação? Qual a implicação
disso na historia litteraria ou na harmonia universal?" Não, não se
tracta meramente de reflectir sobre o ambiente silencioso ou ruidoso
conforme a solidão ou a companhia do momento. Tampouco de conjecturar
sobre o immutavel mutismo kosmico, quer sob a optica physica, quer sob a
metaphysica. Talvez devessemos enquadrar o silencio sob um olhar mais
"quantico", a partir duma percepção, não digo extrasensorial, mas
synesthesica. A philosophia que está por traz do silencio é a mesma que
está por traz das trevas. No silencio, a memoria auditiva funcciona para
que sintamos falta dos ruidos aos quaes estamos accostumados; na
escuridão, é a memoria visual que preenche a lacuna. Dahi se deprehende
que o silencio seria a saudade do som, tanto quanto a escuridão seria a
saudade da imagem. Por outras palavras, o silencio equivale à surdez,
como a escuridão à cegueira. Tudo bem, um silencio temporario é mesmo
repousante, tal como uma luz apagada é necessaria ao somno. Mas ninguem
desejaria um silencio eterno nem perpetuas trevas, a menos que tenha
perdido o amor pela vida. Em ultima analyse, que significa amor à vida?
Talvez amor às outras vidas que convivem com a nossa vida e amenizam a
sensação (ou o sentimento) de solidão. Precisamos de companhia tanto
quanto precisamos ver e ouvir aquelles que nos accompanham. Claro que
passar uma noite em claro nos impacienta, especialmente quando a
insomnia é causada pela barulheira da vizinhança. Mas peor que isso é
admanhescer sem ninguem a nosso lado, sem outra pessoa ou sem um
cachorro, por exemplo. Akira e Chicho representam mais que presenças
physicas: são signaes vitaes reciprocos, de que existimos um para o
outro. No meu caso, si não posso vel-os, posso ouvil-os e tocal-os,
donde a saudade de suas vozes, na ausencia delles, ja que suas figuras
não me são perceptiveis. Em summa, silencio é saudade. Portanto,
silencio não pode ser synonymo de eternidade, mas apenas de espera e de
paciencia, como quando agguardo a volta do Chicho ou do Akira, que
sahiram a passear e me deixaram aqui viajando mentalmente. Para remactar
a philosophia do silencio, transcrevo o sonnetto cujo video abriu esta
chronica.



SONNETTO FAREJADO (624)


Bassê no appartamento fuça em tudo!
Passeia pela sala e faz lambança
no pé dos moveis, maximo que alcança
um corpo tão comprido e salsichudo...


Ja li de especialistas um estudo
provando que o bassê, mais que a creança,
precisa bagunçar, e só se admansa
com beijo. Então, do meu nunca desgrudo.


Commigo no sofá, tambem cochila;
só falta, à mesa, usar o mesmo prato;
na cama nossa noite é bem tranquilla.


Extranham que ao cão como gente tracto?
Pois saibam que até cocker, collie e fila
me lattem dos vizinhos! E eu lhes latto!



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