sábado, 30 de janeiro de 2016

30 DE JANEIRO/2016: DIA DA SAUDADE



Tenho um orelhudo bassetudo chamado Chicho, de cuja existencia ha quem
duvide. A mim tanto faz, ja que muita gente duvida da minha propria
existencia. Quem duvida allega que venho gabando meu bassethound desde
os annos noventa e que um cachorro de verdade não viveria até agora,
todo pimpão, pernicurto, orelhilongo e marron. São modos de ver. Poucos
supporiam que um cego escrevesse mais de cinco mil sonnettos, alem de
obras noutros generos, depois dos cincoenta. Portanto, tenho credenciaes
para confrontar as incredulidades. Mas não é de virtudes nem de
virtualidades que quero fallar. O que desejo é confraternizar com outros
donos de bassets, visando a troca de figurinhas e factoides sobre o
comportamento da salsicharia.


O primeiro e mais assiduo desses confrades é conhescido aqui no bairro
como Seu Jorge, mas, filho de inglezes, chama-se na verdade George
Rogers. Seu bassetudo se chama Salomão Swift, mas, para os amigos, Salô.
Seu Jorge é sessentão como eu. Quanto ao Salô, tem a edade do meu
Chicho, ou seja, suppostamente advançada porem tenra como um presuncto
natalino.


Chicho foi registrado como Chichorro da Gama no certificado de pedigree,
mas prefere ser chamado pelo appellido, tal como o Salô. A principio
imaginei que o Chicho precisasse de companhia e até pensei em dar-lhe
dois "maninhos", o Chocho e o Chucho. Quando o Chicho enjeitasse alguma
refeição, bastaria admeaçar offerecel-a ao Chocho ou ao Chucho, e
immediatamente elle limparia o prato. Deschartada, por inviavel, a idéa
de ter trez bassetudos num appartamento, agora basta admeaçar o Chicho
de dar seu prato ao passarinho que nos frequenta a janella, e não sobra
migalha da ração. Não que o Chicho seja magro e inappetente, fique
claro. Elle gosta é de filar tudo que a gente esteja comendo, alem dos
abundantes biscoitos caninos que abbastescem nossa despensa. Quando se
enfastia da ração é porque ja está empanturrado de guloseimas, como
qualquer creança estragada.


A eventual companhia de que o Chicho sentia, talvez, a falta, surgiu
quando fui appresentado ao Salô e seu dono, os quaes passaram a nos
visitar regularmente, com direito a reciprocidade. Nessas occasiões,
Chicho e Salô viravam uma verdadeira dupla do barulho. Akira, meu
companheiro, que os photographa e filma, ja collecciona formidavel
acervo de scenas anthologicas, comparaveis aos mais assistidos videos do
youtube, estrellados por famosos bassethounds internacionaes, como Frank
the Tank e Sweet Sarah, Lakka e Hugo, Elbee ou Erubi San, Hal ou Haru
San, Porthos McRuff, Lucy, a cantora lyrica, Lyly, a chorona cynica,
Archie, o amigão dos gattos, Tommy, o pianista, Monty e Benji, os
anniversariantes, Moose, que passeia de carro com a cara para fora, e
tantos outros.


A convivencia do Chicho com Chocho e Chucho, no dia-a-dia, seria bem
difficil, tendo que dividir a comida e o espaço de carinho da gente. Mas
com Salô a coisa é differente, pois o esporadico tempo das visitas, de
parte a parte, mal chega para tanta cheiração, lambeção, lattição e
abanação de rabo. Alem disso, são mais donos dividindo a tarefa de
vigiar e papparicar os dois bagunceiros. Jorjão sempre se promptifica a
leval-os de carro até o parque, coisa que Akira não poderia fazer, pela
falta de carro, nem eu, pela falta de visão. A proposito, si a cor do
Chicho é todinha marron, a do Salô é quasi toda preta. As toucas
protectoras das orelhonas durante o passeio, essas differem: as do
Chicho em tons de vermelho, as do Salô em azues variados. Akira, quando
pode, accompanha Jorjão no carro, para photographar a salsicharia à
solta no parque, mas eu só fico em casa, desmotivado pela cegueira.


Minha sensação de isolamento se aggrava nos finaes de anno, quando Akira
passa Natal e réveillon no sitio dos paes, proximo à reserva florestal
das cataractas do Iguassu. Sim, ja fui convidado a accompanhal-o, mas,
prevenido accerca das aranhas gigantes, das cobras, dos mosquitos e da
inclemencia climatica, prudentemente declinei. Ja que os mosquitos andam
na moda, vale salientar que, naquellas bandas, são tantos a nos piccar
num só momento, que tornariam sem effeito quaesquer allusões a
repellentes, insecticidas chymicos e electricos, ou cortinas
protectoras. Nem preciso, portanto, referir-me a piccadas mais lethaes
ou phobicas.


Na ausencia do Akira, Chicho passa uns dias na casa do Salô, para não
incommodar outros amigos ou parentes que antes tomavam compta delle. Seu
Jorge está mais estructurado para attender às necessidades quotidianas
dos molecotes, incluindo qualquer hypothetica emergencia veterinaria
(algo de que Chicho jamais necessitou), alem de propiciar-lhes a mutua
companhia, até que, com o retorno do Akira, tudo volte à roptina e ao
convivio domestico.


Quanto a mim, fico remoendo a falta de companhia, occupando o tempo
entre o somno, o som nos phones, as noticias no radio ou o trabalho no
computador fallante. Passados os pyrotechnicos festejos do anno novo, a
Villa Mariana mergulha em sepulchral quietude, tanto nocturna quanto nas
manhans ensolaradas, quietude quebrada apenas pelo rhoncho das motos dos
entregadores de pizza, à noite, ou pelo esporadico lattido da
cachorrada. Neste começo de janeiro, entretanto, paresce que até a
cachorrada accompanhou os donos nas viagens de ferias. Excepto por um
esquecido guardião que, lamentando sua condição de prisioneiro, solta a
voz, fazendo echoar pelos quintaes, reverberado de predio em predio,
aquelle uivo semelhante ao do lobo desgarrado ou do lobishomem sem rhumo
no meio do matto.


Aquillo me deixa agoniado. Meu choro é silencioso, meditabundo e
inconsolavel. O delle é uma especie de contraponcto loquaz da minha
mortificação muda. Só me resta contactal-o em pensamento, tentando uma
communicação telepathica entre nossas carencias affectivas e
existenciaes. Nem sei si esse abandonado cachorrão é bassethound.
Provavelmente não, pois uiva como cão de maior porte. Mas, nessas horas,
pouco importa a minha preferencia pelos rasteiros e salsichudos. Eu, o
cachorrão deshumanista, solidarizo-me com seu desamparo e, na
impossibilidade de soccorrel-o (ou de ser soccorrido por elle),
limito-me a compor-lhe a endecha a seguir transcripta, com a qual me
despeço e aggradesço a paciencia de quem leu até aqui.



O BAIRRO DAS HORAS UIVANTES [Glauco Mattoso]


Um anno interminavel foi-se embora,
saudades sem deixar. Sacudo o pó
do tempo nas sandalias e ao brechó
separo mais um livro, ou jogo fora.


As noites silenciam, quasi, agora
que todos viajaram e estou só.
Ah, como dum cachorro sinto dó!
Escuto o seu chamado: ah, como chora!


Ao longe uivando, ouvil-o só peora
a minha solidão e apperta o nó
que trago na garganta. Nem totó
mimoso, nem rueiro, é o cão da aurora.


No longo feriadão, sente a demora
dos donos, num quintal qualquer, mas, oh,
quizera estar com elle, que xodó
me passa a ser! E eu choro, sem ter hora...



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