sábado, 30 de janeiro de 2016
30 DE JANEIRO/2016: DIA DA SAUDADE
Tenho um orelhudo bassetudo chamado Chicho, de cuja existencia ha quem
duvide. A mim tanto faz, ja que muita gente duvida da minha propria
existencia. Quem duvida allega que venho gabando meu bassethound desde
os annos noventa e que um cachorro de verdade não viveria até agora,
todo pimpão, pernicurto, orelhilongo e marron. São modos de ver. Poucos
supporiam que um cego escrevesse mais de cinco mil sonnettos, alem de
obras noutros generos, depois dos cincoenta. Portanto, tenho credenciaes
para confrontar as incredulidades. Mas não é de virtudes nem de
virtualidades que quero fallar. O que desejo é confraternizar com outros
donos de bassets, visando a troca de figurinhas e factoides sobre o
comportamento da salsicharia.
O primeiro e mais assiduo desses confrades é conhescido aqui no bairro
como Seu Jorge, mas, filho de inglezes, chama-se na verdade George
Rogers. Seu bassetudo se chama Salomão Swift, mas, para os amigos, Salô.
Seu Jorge é sessentão como eu. Quanto ao Salô, tem a edade do meu
Chicho, ou seja, suppostamente advançada porem tenra como um presuncto
natalino.
Chicho foi registrado como Chichorro da Gama no certificado de pedigree,
mas prefere ser chamado pelo appellido, tal como o Salô. A principio
imaginei que o Chicho precisasse de companhia e até pensei em dar-lhe
dois "maninhos", o Chocho e o Chucho. Quando o Chicho enjeitasse alguma
refeição, bastaria admeaçar offerecel-a ao Chocho ou ao Chucho, e
immediatamente elle limparia o prato. Deschartada, por inviavel, a idéa
de ter trez bassetudos num appartamento, agora basta admeaçar o Chicho
de dar seu prato ao passarinho que nos frequenta a janella, e não sobra
migalha da ração. Não que o Chicho seja magro e inappetente, fique
claro. Elle gosta é de filar tudo que a gente esteja comendo, alem dos
abundantes biscoitos caninos que abbastescem nossa despensa. Quando se
enfastia da ração é porque ja está empanturrado de guloseimas, como
qualquer creança estragada.
A eventual companhia de que o Chicho sentia, talvez, a falta, surgiu
quando fui appresentado ao Salô e seu dono, os quaes passaram a nos
visitar regularmente, com direito a reciprocidade. Nessas occasiões,
Chicho e Salô viravam uma verdadeira dupla do barulho. Akira, meu
companheiro, que os photographa e filma, ja collecciona formidavel
acervo de scenas anthologicas, comparaveis aos mais assistidos videos do
youtube, estrellados por famosos bassethounds internacionaes, como Frank
the Tank e Sweet Sarah, Lakka e Hugo, Elbee ou Erubi San, Hal ou Haru
San, Porthos McRuff, Lucy, a cantora lyrica, Lyly, a chorona cynica,
Archie, o amigão dos gattos, Tommy, o pianista, Monty e Benji, os
anniversariantes, Moose, que passeia de carro com a cara para fora, e
tantos outros.
A convivencia do Chicho com Chocho e Chucho, no dia-a-dia, seria bem
difficil, tendo que dividir a comida e o espaço de carinho da gente. Mas
com Salô a coisa é differente, pois o esporadico tempo das visitas, de
parte a parte, mal chega para tanta cheiração, lambeção, lattição e
abanação de rabo. Alem disso, são mais donos dividindo a tarefa de
vigiar e papparicar os dois bagunceiros. Jorjão sempre se promptifica a
leval-os de carro até o parque, coisa que Akira não poderia fazer, pela
falta de carro, nem eu, pela falta de visão. A proposito, si a cor do
Chicho é todinha marron, a do Salô é quasi toda preta. As toucas
protectoras das orelhonas durante o passeio, essas differem: as do
Chicho em tons de vermelho, as do Salô em azues variados. Akira, quando
pode, accompanha Jorjão no carro, para photographar a salsicharia à
solta no parque, mas eu só fico em casa, desmotivado pela cegueira.
Minha sensação de isolamento se aggrava nos finaes de anno, quando Akira
passa Natal e réveillon no sitio dos paes, proximo à reserva florestal
das cataractas do Iguassu. Sim, ja fui convidado a accompanhal-o, mas,
prevenido accerca das aranhas gigantes, das cobras, dos mosquitos e da
inclemencia climatica, prudentemente declinei. Ja que os mosquitos andam
na moda, vale salientar que, naquellas bandas, são tantos a nos piccar
num só momento, que tornariam sem effeito quaesquer allusões a
repellentes, insecticidas chymicos e electricos, ou cortinas
protectoras. Nem preciso, portanto, referir-me a piccadas mais lethaes
ou phobicas.
Na ausencia do Akira, Chicho passa uns dias na casa do Salô, para não
incommodar outros amigos ou parentes que antes tomavam compta delle. Seu
Jorge está mais estructurado para attender às necessidades quotidianas
dos molecotes, incluindo qualquer hypothetica emergencia veterinaria
(algo de que Chicho jamais necessitou), alem de propiciar-lhes a mutua
companhia, até que, com o retorno do Akira, tudo volte à roptina e ao
convivio domestico.
Quanto a mim, fico remoendo a falta de companhia, occupando o tempo
entre o somno, o som nos phones, as noticias no radio ou o trabalho no
computador fallante. Passados os pyrotechnicos festejos do anno novo, a
Villa Mariana mergulha em sepulchral quietude, tanto nocturna quanto nas
manhans ensolaradas, quietude quebrada apenas pelo rhoncho das motos dos
entregadores de pizza, à noite, ou pelo esporadico lattido da
cachorrada. Neste começo de janeiro, entretanto, paresce que até a
cachorrada accompanhou os donos nas viagens de ferias. Excepto por um
esquecido guardião que, lamentando sua condição de prisioneiro, solta a
voz, fazendo echoar pelos quintaes, reverberado de predio em predio,
aquelle uivo semelhante ao do lobo desgarrado ou do lobishomem sem rhumo
no meio do matto.
Aquillo me deixa agoniado. Meu choro é silencioso, meditabundo e
inconsolavel. O delle é uma especie de contraponcto loquaz da minha
mortificação muda. Só me resta contactal-o em pensamento, tentando uma
communicação telepathica entre nossas carencias affectivas e
existenciaes. Nem sei si esse abandonado cachorrão é bassethound.
Provavelmente não, pois uiva como cão de maior porte. Mas, nessas horas,
pouco importa a minha preferencia pelos rasteiros e salsichudos. Eu, o
cachorrão deshumanista, solidarizo-me com seu desamparo e, na
impossibilidade de soccorrel-o (ou de ser soccorrido por elle),
limito-me a compor-lhe a endecha a seguir transcripta, com a qual me
despeço e aggradesço a paciencia de quem leu até aqui.
O BAIRRO DAS HORAS UIVANTES [Glauco Mattoso]
Um anno interminavel foi-se embora,
saudades sem deixar. Sacudo o pó
do tempo nas sandalias e ao brechó
separo mais um livro, ou jogo fora.
As noites silenciam, quasi, agora
que todos viajaram e estou só.
Ah, como dum cachorro sinto dó!
Escuto o seu chamado: ah, como chora!
Ao longe uivando, ouvil-o só peora
a minha solidão e apperta o nó
que trago na garganta. Nem totó
mimoso, nem rueiro, é o cão da aurora.
No longo feriadão, sente a demora
dos donos, num quintal qualquer, mas, oh,
quizera estar com elle, que xodó
me passa a ser! E eu choro, sem ter hora...
///
sábado, 9 de janeiro de 2016
6 DE JANEIRO/2016: DIA DA GRATIDÃO
NORDESTINIDADE E FESCENNINIDADE
[1] Este titulo, que ja baptizou um livro do professor Barros Toledo,
tomo-o de emprestimo para referir-me a outro titulo, o unico que me
orgulho de ter recebido em meus 64 annos de vida e 40 de carreira
litteraria: membro honorario da Academia Canindeense de Lettras, Artes e
Memoria (ACLAME), em julho passado. Dos demais, como "Poeta da
Crueldade" ou "Principe das Trevas dos Poetas Pornosianos", nenhum é
official nem outhorgado mediante diploma, como aquelle que me chegou por
indicação do poeta da terra Sylvio Sanctos.
[2] Não sei por quaes fatidicas (ou vatidicas) veredas astraes me vejo
tão transplantado ao solo cearense. Talvez por artimanhas do proprio
destino contido no gentilico daquella região que me (nor)destina a
correspondencia trocada por decadas com os escriptores de la, como Nilto
Maciel (com quem organizei uma anthologia de contistas marginaes em 1977
e em cuja revista LITTERATURA collaborei), Carlos Emilio Correa Lima,
Arievaldo Vianna (que, tambem illustrador, collaborou na arte do meu
livro SACCOLA DE FEIRA), Pedro Paulo Paulino e o proprio Sylvio Sanctos,
entre outros que preferem ficar occultos sob pseudonymo. Veredas, dizia
eu, talvez evocativas da estrada decantada por Luiz Gonzaga na lettra do
baião que transcrevo de cor:
Ai ai, que bom,
que bom, que bom que é
uma estrada e uma cabocla
com a gente andando a pé!
Ai ai, que bom
que bom, que bom que é
uma estrada e a lua branca
no sertão de Canindé!
"Artomove" la nem se sabe
si é "home" ou si é "muié".
Quem é rico anda em burrico,
quem é pobre anda a pé.
Mas o pobre vê nas estrada(s)
o "orvaio" beijando as "flô",
vê de perto o gallo campina,
que quando canta muda de "cô",
vae "moiando" os pé(s) no riacho,
Que agua fresca, Nosso "Sinhô"!
Vae "oiando" coisa a "grané",
coisas que p'ra "mó" de "vê"
o christão tem que andar a pé.
[3] Claro, estreitei laços tambem com nordestinos de outros estados,
alguns radicados fora da terra natal, outros mantendo as raizes. Da
Parahyba, alem de Severino do Ramo (parceiro de sacanagens poeticas e
sexuaes na phase visual), meu maior interlocutor foi Braulio Tavares, a
quem credito o interesse que me despertou a litteratura de chordel (como
a de bordel) desde a decada de 1970. De Pernambuco o contacto foi, alem
de Jomard Muniz de Britto, os punks da banda Devotos do Odio, o critico
João Alexandre Barbosa e seu filho Frederico, o badalado balladeiro
litterario Marcellino Freyre e tantos outros litteratos. De Alagoas, ja
na phase cega, a professora Susana Souto Silva. Do Rio Grande do Norte,
o poeta gay Paulo Augusto e, mais recentemente, o ficcionista Thiago
Barbalho. E por ahi vae. A lista cearense accabou ficando maior depois
que conhesci o neochordelista Moreira de Acopiara, com quem pellejei em
2007, que me appresentou à pleiade dos fescenninos confrades cultuadores
de Aphrodite e Baccho entre Canindé e Caucaya.
[4] A connexão canindeense me propiciou um fertil intercambio nos
ultimos annos, tanto pela rede virtual quanto pelo correio physico. À
medida que meus livros iam chegando às mãos de Sylvio Sanctos, eu
recebia caixas e mais caixas contendo ex-votos em formato de pés
esculpidos em madeira, entre outros mimos, até que, surpreso ao receber
o enveloppe contendo o diploma da ACLAME, me dei compta de que Sanctos
não pilheriava quando me communicou sobre a homenagem a que fiz jus. Dia
desses, batteu-me a curiosidade e indaguei delle si a canção gonzaguiana
ainda reflectia a realidade da região, em termos de scenario não tão
arido. Affinal, o baião nem falla em secca, embora alluda à pobreza. E
questionei: Ainda subsiste essa vocação "andarilha" da estrada, em
detrimento dos "artomove"? Sylvio respondeu:
{De facto, 65 annos depois dessa canção, o scenario não está melhor. O
desmattamento foi generalizado, o clima é causticante, em quasi cinco
annos de secca, nada de agua fresca ou gallo campina mudando de cor.
Dependemos de uma adductora distante, com vazamentos pelo percurso, um
ou dois dias por semana, pois ha racionamento. O rico agora anda de
Hilux e o pobre, predador da apposentadoria dos avós ou do bolsa
familia, anda de moto. Paresce não haver uma vocação para o
desenvolvimento economico, a exemplo de Joazeiro do Norte. Uns dizem que
devido à proximidade da capital. Ha varios factores a levar em compta.
Politicamente, ha um chaos que lembra Sucupyra. Gonzaga & Humberto
Teixeira não fazem referencia à romaria ou ao padroeiro, será que
indirectamente, em seu appello tellurico?}
[5] Em 2008, o circulo de amigos de Sanctos, occulto pelo pseudonymo
Manoel No Brega, preparava uma anthologia collectiva intitulada PEROLAS
PORCAS, que não chegou a sahir. A pedido, fiz-lhes uma nota prefacial
(melhor dizendo, prepucial, ja que se tractava da mais authentica
"poesia de bordel"), vazada nestes termos:
{O trocadilhesco heteronymo (e bote hetero nisso) que assigna os
sonnettos e as glosas de "Perolas porcas" é porta-voz (ou porca-voz) dum
grupo de frequentadores do lendario cabaré Vae-Quem-Quer, na cidade
cearense de Canindé. Collegas de vida bohemia e de veia poetica,
começaram thematizando o proprio lupanar, exhaurindo-o nas piccantes
rhymas em "alho", e accabaram extrapolando o ambiente prostibular em
direcção à universalidade da putaria humana. O resultado se corporifica
e se desnuda em dezenas de sonnettos e decimas que se flexibilizam entre
a redondilha "de maior" e o decasyllabo "safado", com a elasticidade dum
courinho de picca. Os leitores de Bocage, de Gregorio, de Moniz Barreto
ou de Moysés Sesyom, na certa irão reesporrar ao lerem estas fescenninas
satyras, em que o baixo calão se nivela, no mais alto grau, ao baixo
meretricio.}
[6] Emquanto accompanhava a preparação da anthologia, eu mantinha um
dialogo poetico com os joviaes sonnettistas. Em janeiro daquelle anno,
glosei um dos sonnettos que entrariam na collectanea. Transcrevo-o antes
do meu:
Nunca comi ninguem sinão a soldo
Nos lupanares tresandantes onde
Andei; por la perdi de vez o bonde,
As resacas curei com cha de boldo.
E costumava, à sombra de algum toldo,
Ja bebado, indagar: -- Ninguem responde?
Surgia a quenga desse esconde-esconde,
Mentindo: -- Estava alli com "seu" Haroldo!
Este era um gay que preparava a boia
E mendigava algum no bar da Leda.
De mascotte, elle tinha uma giboya...
Preferindo beber cachaça azeda,
Para dormir usava uma tipoya...
Seu lemma: o pau eu chupo nem que feda...
SONNETTO PARA UM BORDEL MEMORAVEL [2128]
Havia um lupanar em Canindé
chamado Vae Quem Quer, cujo cliente
prefere até chamar de cabaret,
provando que saudades delle sente.
A mim, a quenga classica não é
quem mais attenção chama, e sim um ente
folklorico, esse Haroldo, cuja fé
na propria honra viril era descrente.
Si eu, cego, alli estivesse, em seu logar,
teria o mesmo lemma a sustentar,
ou seja: "O pau eu chupo, nem que feda!"
Apenas uma coisa eu accrescento:
si, apoz gozar, mijar-me um pau sebento,
normal é que, de vaso, a bocca eu ceda...
[7] Outro sonnetto que glosei foi este, tambem composto em orgiaca
parceria grupal, ja thematizando os ex-votos que Sanctos me enviava pelo
correio:
Antiga tradição em Canindé
Exige que alcançada alguma graça
Procure-se artezão, que logo traça
Da cura, em rude traço, aquella fé...
Seja a cabeça, o braço, a bocca, o pé...
Do corpo alguma parte onde perpassa
A chaga, a dor... Ha quem promessa faça
Para livrar o tennis do chulé...
Mas ao podophilo talvez attice
Os artelhos, quem sabe o mocotó
Dos beatos, suados e sabendo a pó
A fustigar na senda da crendice...
Em lavapés a lingua ja addeanta
Sem esperar a quincta-feira sancta...
SONNETTO PARA UMA FÉ TIDA COMO FETIDA [2136]
Fallei ja muito sobre um pé de ex-voto,
lavrado na madeira, nordestina
e antiga tradição, na qual só boto
meu credo si a intenção for fescennina...
Fallei do lavapés, gesto que adopto
não só nas quinctas-feiras, e em bolina
converte-se, pois lambo, e até na photo
estou, a salivar na fedentina...
Chulé que nem aquelle do romeiro
que, sob o sol, caminha o dia inteiro,
é coisa que venero e glorifico!
Christão nem sou, mas, cego, só me humilho:
lavar, lambendo, os pés dum andarilho,
é estar do pobre abbaixo, alem do rico...
[8] Ainda em fevereiro de 2008, ao receber um ex-voto mais detalhado no
peito que na sola do pé de madeira, aggradesci o presente com este
sonnetto, glosando mais um que me chegava simultaneamente à encommenda:
PACOTE AO POETA [Sylvio Sanctos]
Enviado numa caixa de sapato,
partiu pelo correio vespertino,
tendo como SAMPA fim, destino,
aquillo sobre o qual fizemos tracto...
Na madeira, paresce-me, ha extracto
fedido, como gostas, nada fino...
Si egypcio, não garanto... descortino
no "Manual do podolatra" este facto.
Pedes-me do surfista sua pranchha,
mas não a sobre a qual o pé escancha...
Tua onda attendo então por outro "tubo"...
Elevado o teu tacto seja ao cubo!
quando nas mãos tiver de Canindé,
em ex-voto, talhado bruto pé.
SONNETTO PARA O RECEBIMENTO E A ACCUSAÇÃO [2313]
Accaba de chegar a caixa. Grato,
accuso que a recebo. Dentro, inteira
lavrada em bruta tora de madeira,
a estatua dum pezão thalludo e chato.
A peça que esculpiram tem o exacto
formato que eu desejo e que a certeira
visão do amigo Sylvio, de primeira,
sacou do que, em meus versos, tanto tracto.
Só tenho a lamentar que esse artezão
tão habil, ja famoso em Canindé,
não tenha, sob os dedos, feito o vão.
Em tudo está perfeito aquelle pé:
o dorso, a sola, as unhas... Meu tesão
sentiu falta é do nicho do chulé!
[9] Não foi Sanctos, comtudo, quem me despertou o vicio de colleccionar
ex-votos de pés. Desde 2006, quando ganhei um do artista plastico Valdir
Rocha, percebi que aquellas rusticas estatuetas excitavam meu senso
tactil a poncto de me fazerem viajar em oniricas (para não dizer em
orgasticas) scenas emquanto as appalpava. Eis o sonnetto que fiz na
occasião, conclamando os amigos dispostos a me papparicar:
SONNETTO ESPALHADO [1069]
Procura-se um pé chato, largo e grande,
que tenha bem mais curto o "pollegar"
que o dedo "indicador"! Nesse invulgar
formato, algo esculpido alguem me mande!
Você, que as dicas pela rede expande,
me adjude este pedido a divulgar!
De macho ou femea, tanto faz, si andar
descalço ou com pesadas botas ande!
Ja fiz, quando enxergava, collecção
de moldes no papel, porem agora
que estou no escuro, vejo com a mão!
Talvez algum ex-voto numa tora
lavrado tenha as formas que darão
noção tactil do pé que um cego adora!
[10] Mas Sanctos não correspondeu apenas à minha demanda por artefactos
typicos da terra: graças a elle obtive uma copia da rara monographia dum
illustre canindeense, intitulada justamente O SONNETTO. Tracta-se do
retardatario parnasiano Cruz Filho, que mappeou o genero em auctores dos
dois lados do Atlantico e me instigou a elaborar uma reedição
commentada, que disponibilizei na rede sob o titulo HISTORIA E THEORIA
DO SONNETTO e que hoje está tambem na nuvem. Foi esse documento digital,
sem duvida, o que mais contribuiu para que o titulo da ACLAME me fosse
concedido. Entretanto, nem só de sonnetar vivem os bardos nordestinos: o
motte glosado, ou seja, o disticho commentado em decima, ainda é e será
sempre a modalidade mais propicia à satyra fescennina. Tambem nesse
molde trocamos figurinhas, os canindeenses commigo. Um exemplo está na
collectanea que organizei com o uspiano professor Antonio Vicente
Seraphim Pietroforte, intitulada AOS PÉS DAS LETTRAS: ANTHOLOGIA
PODOLATRA DA LITTERATURA BRAZILEIRA, que sahiu pelo sello Annablume em
2011. Algumas das glosas ao motte abbaixo são delles. Transcrevo todas
as incluidas, a começar pela minha.
O machão tem poncto fracco
no pezinho da mulher.
De virilha ou de sovaco
ninguem tem medo ou vergonha.
Temendo que alguem lhe ponha,
o machão tem poncto fracco
é por traz, no seu buraco!
Si dominado estiver,
faz, porem, o que ella quer:
lambe até pé de outro macho
si é mandado e for capacho
no pezinho da mulher!
Tambem glosado por Braulio Tavares na decima abbaixo.
E então quando tira a meia,
apoz descalçar o tennis...
Não admire que o penis
cresça, duro, e inche a veia!
Aroma que me incendeia
para o que der e vier;
fetiche de Baudelaire
pisando as uvas de Baccho...
O machão tem poncto fracco
no pezinho da mulher.
Tambem glosado pelo cearense Arievaldo Vianna na decima abbaixo.
Mulher com sua belleza
E o poder da seducção
Sempre domina o machão
Abrindo sua defesa...
Mas não quero ser a presa
Nem fazer o que ella quer.
Hei de usar o meu "talher"
Para espetar seu "cassaco".
O machão tem poncto fracco
No pezinho da mulher.
Tambem glosado pelo cearense Sylvio Sanctos na decima abbaixo.
Ao machão accostumado
Fellar o salto é normal
Gozando si sabe a sal
Lambe palmilha e solado
Ao jugo femeo prostrado
Põe a lingua onde não quer
Porque si assim não fizer
Ella pisa no seu sacco
O machão tem poncto fracco
No pezinho da mulher.
Tambem glosado pelo cearense Pedro Paulo Paulino na decima abbaixo.
Eu mesmo não dou cavaco,
Pois da verdade eu não zombo:
Por boa linha de lombo
O machão tem poncto fracco.
Assim tambem me destacco.
Com ellas não tem mester.
Mente muito quem disser
Que não fica genuflexo
Deante do lindo sexo,
No pezinho da mulher.
Tambem glosado pelo paulista Danilo Cymrot na decima abbaixo.
E não é que bom malaco
Ja não sae com dama à toa
Nem enjoa da patroa?
O machão tem poncto fracco,
Passa a noite em seu barraco
Como um conjuge qualquer,
Accredite quem puder!
Quem reinava nos desfiles
Tem seu calcanhar de Achilles
No pezinho da mulher...
Tambem glosado pelo paranaense Leo Pinto na decima abbaixo.
Do potentado ao malaco,
do escandinavo ao zulu,
nas immediações do cu
o machão tem poncto fracco.
Si a lingua desce do sacco,
elle finge que não quer,
mas si acaso ella couber
no buraco mais abba'xo
elle vira até capacho
no pezinho da mulher.
Tambem glosado pelo pernambucano Pedro Americo na decima abbaixo.
Depois de Glauco Mattoso
de Braulio e Arievaldo
com que osso faço o caldo
neste thema tão mimoso?
Si me inspirar o tinhoso
si um pé bonito tiver
e ainda o verbo vier
na lei de Eros e Baccho
o machão tem poncto fracco
no pezinho da mulher.
[11] Concluindo este retrospecto, transcrevo a glosa com a qual
manifestei minha gratidão pelo accolhimento dado a um cego menos
cantador que contador de desvantagem. Si do Gonzagão eu ja valorizava em
particular a canção "Assum preto" por fallar de perto ao meu callo de
cego, agora incluo "Estrada de Canindé" entre as composições das quaes o
valor affectivo pesa mais que a preferencia pelos classicos
prioritariamente anthologicos, como "Asa branca" ou "Parahyba". Um
kardecista ja me disse que, sendo Ferreira da Silva, glaucomatoso e
bisexual, é bem possivel que minha vida não passe duma reencarnação do
Virgulino. Si não for, na proxima entro para o bando de Lampeão nas
deserticas caatingas de algum planeta gemeo em outra galaxia. Emquanto
isso, me contento por ter entrado para o selecto grupo dos illustres
andarilhos da tavola redondilha.
Canindé, Canindeense:
de la veiu o meu diploma.
Immortal tornei-me, pense
quem duvida o que quizer!
E o logar não é qualquer:
Canindé, Canindeense!
Pois não é que la se vence
o ostracismo que se somma
à cegueira que o glaucoma
me causou? Pois é, na ACLAME
tenho amigo que me acclame:
de la veiu o meu diploma!
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