sábado, 5 de março de 2016

14 OU 21 DE MARÇO/2016: DIA DA POESIA



Para lembrar a poesia, nada melhor que um conto. Dum de meus melhores
amigos e collegas de penna, Luiz Roberto Guedes, recebi dia desses outro
conto do typo "veridico retocado", em que elle revisitava uma visita que
me fez quando eu morava no Rio, entre 1975 e 1978. Nem todas as scenas
recuperadas por Guedes estavam na minha memoria, mas as reminiscencias
de Sancta Thereza me refrescam o convivio com varios artistas da epocha,
inclusive compositores como Sergio Sampaio, hoje pouco lembrado mas
idolo meu naquella decada. Sergio tinha desponctado com o album que
trazia a canção "Eu quero é botar meu bloco na rua", mas não era essa a
minha faixa favorita. Eu preferia as mais rockeiras, typo "Labyrinthos
negros", ao estylo de seu amiguito Raul Seixas, embora tambem no samba
Sampaio fosse meio anticonvencional, com lettras cerebraes cantadas em
dicção quasi declamatoria, sobre arranjos fusionistas. Junctamente com
GITA do Raul, foi o disco que mais ouvi naquelles mezes antes de me
mudar para o Rio, sem suppor que faria amizade com aquelle antiesthetico
personagem que exhibia os pés descalços no anterior LP da Sociedade
Kavernista, uns pés magros e compridos que me despertavam phantasias,
bem differentes dos de Raul, que tambem apparesciam nas photos da
contracappa.


Ja ambientado no clima postropicalista carioca, fui appresentado ao
Sergio por um batterista que o accompanhava e com quem dividi casa por
breve tempo. Sujei os pés na lama e fui conversar com elle, como diria o
proprio Sampaio. Mostrei-lhe alguns poemas, na esperança de que os
musicasse, mas elle era muito bom de lettra e precisava approveitar as
proprias idéas. Mesmo assim, approveitou algumas minhas, o que me deixou
gratificado. Uma dellas foi bem podolatra. Suggeri que, num proximo
disco, elle fosse photographado mostrando as solas em primeiro plano, ja
que no disco kavernista só dava para ver o dorso. Sergio achou graça,
captou a minha mensagem, mas, timidamente, desconversou. Quando eu ja
voltara a morar em Sampa, sahiu o album TEM QUE ACCONTESCER, em cuja
cappa elle mostrava as solas bem na cara da gente, embora não descalças.
Mas a melhor idéa elle approveitou numa lettra. Em nossos pappos, eu
battia na tecla do auctor marginalizado e inedito, ainda antes de batter
na tecla "o" que marcaria a typologia do JORNAL DOBRABIL. Sergio
concordava que o poeta tinha que buscar vehiculos alternativos, em logar
de battalhar no mercado livresco, que era elitista e, peor, censurado
pela dictadura. Elle appoiava francamente a independencia e a
clandestinidade dos poetas marginaes, precursores dos actuaes expoentes
da scena suburbana, como os manos da Cooperipha. Dahi a phrase "Um livro
de poesia na gaveta não addeanta nada: logar de poesia é na calçada",
que me occorreu durante aquellas conversas. Elle a annotou na cabeça e
transformou-a na canção "Cada logar na sua coisa". Preste attenção nessa
lettra quem tenha a paciencia de ler o que escrevo.


Antes de ser consumido por um incendio, o MAM carioca programmava até
shows em seu auditorio, um dos quaes estrellado por Sergio Sampaio.
Estrellado é modo de dizer, pois para mim elle era estrella e até galan.
Mas o publico era pequeno, nada de superproducção. Levei minha camera e
photographei o idolo de differentes angulos, esgueirando-me a seus pés,
na beira do palco. Naquella epocha eu mandava revelar as photos em forma
de slides, que podiam ser vistos contra a luz ou projectados na parede.
Levei os slides do show ao Sergio e, de seu apezinho até um bar no
Leblon, elle me levou num fusquinha, cujo tocafitas me revelou em
primeira mão algumas canções de Milton Nascimento ainda não lançadas em
disco. No bar, Sergio me appresentou ao Alceu Valença e, para não dar a
impressão de que eu seria algum casinho seu, ou viceversa, chamou duas
maluquettes ultratagarellas para a nossa mesa. Mesmo assim salvou-se
alguma coisa daquelle pappo, digo, pelo menos uma scena memoravel para
poder relatar agora.


E por que a relatei? Porque lamento não ter sido photographado ao lado
do Sergio, ou por não ter apparescido em nenhum dos slides. Em
compensação, na mesma epocha alguem fez imagens minhas em super-8, coisa
ainda mais rara que as photos, hoje tão faceis de tirar digitalmente e
postar instantaneamente na rede. O auctor da proeza foi Fabio Stefani,
que accompanhava Guedes na visita ao hotel Bella Vista, bem na esquina
da rua Monte Alegre com a Mauá (hoje Paschoal Carlos Magno), onde morei
e onde morava o memorialista Antonio Carlos Villaça, que tambem
apparesce naquelle curto video mudo, agora digitalizado e youtubado. Si
eu pudesse calcular o valor historico de taes imagens... inclusive
porque Villaça não deve ter muitos registros septentistas filmados. Digo
"valor historico" em termos de historia pessoal, tão importante quanto
nossa linha do tempo no facebook, ou seja, infima.


Citando o conto de Guedes: {Encontramos Glauco giboyando o almoço, em
companhia de outro morador do Bella Vista. Um subjeito gordo, de longa
barba grisalha e ar beatifico de monge: o escriptor Antonio Carlos
Villaça. Depois das formalidades, pedi licença p'ra que Astroman
capturasse o momento com a super-8. Lembro que Villaça fallava de Rilke,
dizia que o poeta era um "creador kosmico", porque fundia, em si e na
obra, o character religioso, ethico e esthetico. Commentei que tinha
lido CHARTAS A UM JOVEN POETA, e elle observou que nessa obra Rilke
postulava a formação humana como fundamento da educação esthetica. No
mesmo tom sereno, Villaça disse que precisava fazer a sesta. Antes de
retirar-se, perguntou meu nome, e me prometteu "um presentinho de
boas-vindas". Figura gentilissima.}


Retornemos ao presente. No banco da frente, vão Jorge dirigindo e Akira
filmando. No de traz, Chicho e Salô, cada um com a cara para fora da sua
janella, orelhas ao vento, lattindo para todo mundo, incluindo as
bassetinhas e os outros bassetudos advistaveis pelo caminho, até
chegarem ao Ibirapuera, quando as toucas são collocadas para que as
orelhonas não se arrastem pelo chão. Os dois baixotes são soltos no
"cachorrodromo" e Akira lhes registra as correrias e estrepolias em meio
à variada matilha de cockers, beagles e poodles. Sem fallar, claro, na
salsicharia dos dachshunds, nunca antes tão populosa nesta cidade. Ja
mencionados em chronicas anteriores, os quattro dispensam appresentação,
mas o detalhe da camera do Akira eu preciso sublinhar. Elle filma tudo,
photographa tudo, transfere para archivos digitaes incrivelmente
volumosos, copia em midias physicas ou posta na rede, emfim, faz miseria
com as imagens recolhidas num mero passeio domingueiro...


E eu fico aqui em casa, philosophando sobre a transitoriedade da
condição humana e sobre a obsolescencia da technologia. Como serão
documentados os passeios dos bassethounds no seculo XXII? Serão clones e
robots de bassets? A unica conclusão a que chego é a de que alguns
minutos de super-8 gravados na decada de 1970 podem ter a mesma
relevancia cultural ou biographica de annos e annos de filmes digitaes
armazenados no nosso seculo. "Ou não", diria Sergio Sampaio.


Só espero que com os poemas as coisas sejam menos inexoraveis. Será que
cinco mil sonnettos compostos agora valem tanto quanto uns cincoenta na
era camoneana? Ainda bem que não existem poemometros de alta precisão
capazes de acquilatar taes subjectividades. Fiquemos, pois, com as
differentes datas para celebrar a poesia, o que ja reflecte cabalmente a
actual bagunça de criterios e valores...


Despeço-me com estes versos que ninguem comporia na epocha de Camões e
talvez ninguem no seculo vindouro.



SOBRE OUTRO EXTRANHO NO NINHO [sonnetto 2764]


Emquanto la morei, não me occorreu
cruzar com um famoso: a cruzar vim
com outro maldictão egual a mim,
Sampaio, o que calou o Zebedeu.


Com Raulzito Seixas bem se deu,
mas era mais sambista, por assim
dizer, que quem no rock achasse um fim,
um meio, ou um inicio, esse plebeu.


Botou bloco na rua, mas não quiz
ficar indo ao programma do Chacrinha
o resto da vidinha, é o que elle diz.


Seu samba é differente, pois não tinha,
assim como o Roberto, ou como o Assis,
origem carioca, ou como a minha.



DIA DA SALSICHARIA [sonnetto 5050]


Que coisa interessante! Finalmente
alguem nisso pensou! Fez-se o primeiro
"Passeio de Bassês" e até me inteiro
que está no kalendario, annualmente!


Nas festas da cidade, agora, a gente
ja pode vel-os junctos! Esse arteiro
cachorro salsichudo acha parceiro
à bessa e, nessa marcha, bem se sente!


O povo para, applaude, maravilha
os olhos nessa bella passeata
que, em preto ou tom marron, fascina e brilha!


Seus donos orgulhosos são da patta
tortinha e curta! Exhibe-se a matilha
no parque, abbrilhantando mais a data!



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