sábado, 6 de junho de 2015

MAIO/2015: COROA NA CABEÇA, REI NA BARRIGA E PÉ NO SACCO

Depois que o dia da consciencia negra passou a fazer parte do
kalendario, o dia da abolição da escravatura ficou meio desprestigiado,
mas só quero relembrar o 13 de maio para dizer que a Lei Aurea teria
sido o primeiro grande acto da imperatriz Izabel I, caso a republica não
fosse proclamada e continuassemos vivendo no regime monarchico, embora
não se saiba qual das linhas successorias reinaria hoje, si a do filho
mais velho ou a do segundo filho da imperatriz.

Monarchista que sou, como Roberto Piva (que me chamava de Conde Mattoso,
emquanto eu o chamava de Archiduque), ja me vi na obrigação de
justificar minha cor politica quando do plebiscito para a confirmação da
republica ou a restauração da monarchia. Em 1988 escrevi para a revista
A-Z (antiga AROUND) um artigo a respeito, que transcrevo quasi na
integra, devidamente reorthographado.

{Ninguem sabe como está nem como ficará (ou si sobreviverá) o texto da
nova Charta, mas bochicha-se que um artigo nas Disposições Transitorias
estabelesce que em 1993 haverá um plebiscito p'ra ver si o Brazil
continua republica ou volta a ser monarchia. Ora, nada do que foi
incluido no texto constitucional sahiu da cabecinha doidivanas duma só
handorinha (ainda que por traz della, nos bastidores, pudesse estar o
maior lobby de tefepistas, bancos de sangue azul, joalheiros de coroa e
chartorios genealogicos). Tudo que entrou, entrou respaldado em voto.
Mesmo assim, boa parte da imprensa deu risada, a começar pela maior
revista semanal, que gargalhou feito claque do programma do Jô. Tanta
zombaria dá até p'ra desconfiar. Affinal, quem faz pouco caso da idéa tá
esquecendo de proposito que a Hespanha sahiu duma dictadura peor que a
nossa e foi encontrar democracia & prosperidade numa monarchia
hereditaria. Claro que ja tem gente gritando que a realidade hespanhola
nada tem a ver com a brazileira. Mas si fossemos consultar o povão
informalmente, sem suggestional-o com editoriaes ou pronunciamentos em
cadeia, verificariamos que a monarchia tá arraigada no espirito da
massa. Até o distinctivo do Corinthians lembra o brazão imperial...

O povo gosta da idéa de rei, principe, sceptro & throno. Do contrario,
Pelé seria o presidente do futebol, Chico Alves o presidente da voz,
Momo o presidente do carnaval, Bilac o vice-presidente dos poetas
brazileiros, emquanto Chacrinha perguntaria ao auditorio si o calouro
"vae p'ra cadeira ou não vae". Seria uma desmoralização total pros
homenageados. Será que isso significa que a idéa de republica é
desmoralizante? Talvez, pelo menos no Brazil, onde ella suggere
instabilidade, incompetencia, leviandade e complacencia. Em summa, si a
republica ja não inspira confiança e perdeu seu hypothetico vinculo com
a noção de democracia, só haveria um ultimo recurso p'ra remediar toda
essa falta de credibilidade: substituir a republica. Em vez da "velha"
pela "nova", as velhas & novas por algo mais estavel & menos aleatorio.
A monarchia. Não é só na psychologia popular que tal idéa ganha corpo.
Os proprios politicos ja se dispõem a traduzil-a em formulas viaveis.
Tanto que, antes do dispositivo constitucional, houve toda uma
articulação em torno do principio parlamentarista, fachada por traz da
qual se acham muitos monarchistas convictos, embora menos decididos que
aquelles que fundaram um partido monarchista no começo de 1986.

Não sei si o partido tá funccionando, pois não me filiei. O facto é que,
com ou sem partido, sou monarchista por principio, assim como os velhos
& filhos sobreviventes do periodo imperial, mas tambem por uma especie
de nostalgia folklorica, uma curtição que ja deixou de ser kitsch p'ra
virar sophisticação intellectual, ou seja, finesse. Quem me vê como um
cara tarado & debochado pode não accreditar que passei a adolescencia
toda me portando & vestindo como um verdadeiro TFP. Fui tão conservador
que, quando alguns tefepistas me procuraram na faculdade (em pleno
governo Garrastazu) e me convidaram a entrar p'ra casa de Dominus
Plinius, eu respondi que toparia com uma condição: a de que cada um dos
emissarios escrevesse trez palavras numa folha de papel. As palavras
eram "philosophia", "chlorophylla" e "chrysanthemo". Elles não eram tão
bobinhos e sacaram que eu os tava testando. Tentaram entrar na minha e
escreveram "philosophia". Mas nas outras duas se embananaram. Não sabiam
todas as lettras de "chlorophylla" e "chrysanthemo". Ahi foi minha
chance de encerrar o pappo: "Vocês não são tão tradicionalistas. Do
contrario, alem da volta da monarchia defenderiam tambem o uso da
'orthographia etymologica'." E virei as costas. Foi nessa phase
excentrica, de collete & relogio de bolso, que encasquettei uma idéa
ainda mais extravagante: a de ser recebido pelo principe herdeiro da
Coroa brazileira. Meus conhescimentos sobre as instituições imperiaes se
resumiam aos dados historicos e ao texto da constituição de 1824, pela
qual o regime é hereditario por primogenitura masculina. Dizia o artigo
117 que a descendencia de D. Pedro I succederia ao throno "segundo a
ordem regular de primogenitura e representação, preferindo sempre a
linha anterior às posteriores; na mesma linha, o grau mais proximo ao
mais remoto; no mesmo grau, o sexo masculino ao feminino; no mesmo sexo,
a pessoa mais velha à mais moça.". Assim, si a princeza Izabel teve trez
filhos, o mais velho, Pedro de Alcantara, Principe do Grão-Pará, seria o
herdeiro. Como o principe ja morreu, seu filho Pedro Gastão seria o
successor. E D. Pedro Gastão, segundo me disseram, morava em Petropolis,
no palacio Grão-Pará. Não tive duvidas. Escrevi uma charta (em
orthographia antiga, naturalmente) onde me declarava monarchista e, na
maior cara de pau, pedia a Sua Alteza que me hospedasse no palacio. Será
que eu esperava resposta? Si não esperava, veiu. Foi uma recusa, logico,
mas uma recusa com aquella classe, aquella elegancia aristocratica que
só os nascidos em berço de ouro sabem ter. Escripta de proprio punho num
chartão timbrado com o brazão imperial e illustrado com uma gravura de
1870 representando o palacio Izabel (hoje palacio Guanabara, sede do
governo do Rio), dizia a resposta: "Prezado P. José Ferreira da Silva (é
meu nome plebeu, e bem plebeu, por signal, ó desgraça!): Ao voltar de
viagem achei no Grão Pará sua amavel charta. Aggradesço os termos tão
amaveis nella contidos. A Princeza estando ainda na Europa não me é
possivel o hospedar agora. Com meu sincero saudar, Dom Pedro."

Notem a influencia da syntaxe franceza na expressão "o hospedar" em vez
de "hospedal-o". É que Sua Alteza falla mais francez que portuguez, como
legitimo descendente do conde d'Eu, educado na Europa. Chique até dizer
chega, não é, ralé?

Pois é, ganhei um souvenir e satisfiz um capricho que passou,
attropelado por outras preoccupações como a do glaucoma, que exigia
cirurgia e quasi me levou ao suicidio. Depois fiquei sabendo que D.
Pedro Gastão NÃO ERA o legitimo successor da Casa Imperial. A genealogia
tá correcta, mas tinha um detalhe historico que eu desconhescia. O pae
de D. Pedro Gastão, que queria se casar com uma plebéa, teve que
renunciar aos direitos dynasticos, por si e pelos descendentes. Com isso
a linha successoria passou aos descendentes de D. Luiz, o Principe
Perfeito, segundo filho da princeza Izabel. O filho de D. Luiz era D.
Pedro Henrique, que vivia em Vassouras, no interior do Rio, emquanto D.
Pedro Gastão, o residente do palacio Grão-Pará, tinha que deixar a
pretensão ao throno para o primo (actualmente o successor é o filho
deste, D. Luiz de Orleans e Bragança). Deu p'ra entender? Não importa.
Fiquei decepcionado, mas não de todo, pois, como diz o dictado, quem foi
rei sempre tem magestade, ou quem podia ter sido nunca perde o que não
chegou a ter.

Isso colloca uma questão curiosa. Si o plebiscito decidisse pela volta
da monarchia, será que valeria o preceito da constituição de 1824? Si
valesse, a Charta actual teria que ser reformulada. Si não valesse,
nenhuma das linhas rivaes poderia reivindicar o throno, que ficaria sem
dono. A constituição imperial previa a excolha de nova dynastia só para
o caso de extinguir-se a de D. Pedro I. Si isto não vigorasse mais,
qualquer um poderia ser excolhido imperador. Mas excolhido como? Por
eleição directa? Uma dynastia Quadros ou Brizolla? Por via indirecta?
Uma dynastia Sarney, que ja rhyma com rei? Não sei, nem quero saber.

Prefiro elucubrar em cyma de outra questão, a da nobiliarchia. Uma das
coisas mais fascinantes dos regimes monarchicos é a concessão de titulos
honorificos a pessoas de sangue nobre, ja nascidas aristocratas, ou a
plebeus que se destaccam nesta ou naquella actividade e que recebem o
titulo a titulo de premio, digamos assim, por serviços prestados, como
accontesceu com o duque de Caxias e o barão de Mauá. Nas republicas só
existem medalhas de merito militar, commendas e titulos de cidadão
honorario ou doutor honoris causa, mas num imperio o titulo tem mais
charme, porque se incorpora ao proprio nome, podendo até substituil-o.
Poucos sabem o nome civil do barão do Rio Branco ou da marqueza de
Sanctos, mas a figura dos dois é inconfundivel, mesmo porque um era
gordissimo e a outra um thesouro de virtudes. A hierarchia dos titulos é
outra coisa fundamental. Assim como as patentes do exercito formam uma
escadinha de poder & prestigio, os titulos, embora não correspondam mais
ao tamanho do feudo ou latifundio da Edade Media, guardam seu grau de
importancia. O mais baixo é o de barão. Depois vem o visconde, o conde,
o marquez, o duque e o archiduque. Detalhe: o Brazil não teve
archiduques; o maximo que nosso imperio concedeu foi o titulo do duque
de Caxias.}

Reparem que do meu texto transparesce um toque de ironia quando alludo
às elites, justamente porque a revista A-Z circulava em meio ao publico
frequentador das boates e butiques mais caras, comquanto aquelles
"mauricinhos" e aquellas "patricinhas" não tivessem um pingo de sangue
azul.

Nestas ultimas eleições, de 2014, o que me encheram o sacco com
partidarismos petistas e tucanos foi dose. Ainda agora recebo mensagens
circulares diffamando este ou aquelle ex-candidato. Dahi que resolvi
compor a glosa ao motte abbaixo, à qual accrescento um antigo sonnetto,
um madrigal recente, e com a qual mando esses pamphletarios de meia
tigela para o meio do inferno.


PARA UM QUINZE DE NOVEMBRO [sonnetto #1889]

Republica que foi na quartelada
imposta é tão "legitima", de facto,
quanto uma occupação que nos invada
a casa apoz a guerra: é mão de gatto...

De gatto? Si, no roubo, é como o ratto,
os bichos só se egualam, e ja nada
importa si se oppõem no formal tracto,
nem como nos discursa, por si, cada...

Esquerda nem direita: nada adjuda,
si temos de manter a lingua muda,
fingindo que republica ja somos...

De araque é que será a proclamação
daquillo que subjeita uma nação
a ephemeros reinados de reis Momos...


MADRIGAL IMPERIAL

Barão, visconde, conde, marquez, duque...
Um titulo não quero que me encuque.

Barão paresce grande, mas é baixo.
Visconde não é vice que me aggrade
e conde condecora, mas me encaixo
melhor no de marquez, que lembra Sade.
De duque ou de archiduque não me enfaixo
si a faixa não me espelha a crueldade.


MOTTE GLOSADO

Eu no muro nunca fico,
pois do contra sempre sou.

Do tucano odeio o bicco.
Do petista a estrella odeio.
Si me olharem meio feio,
eu no muro nunca fico.
Em Francisco, como em Chico,
meu pau batte e à lucta vou!
Monarchista sendo, dou-
me este rotulo, ao me oppor,
"liberal-conservador",
pois do contra sempre sou!


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